O SUS não é
um mercado de medicamentos e tecnologias
O contínuo
crescimento da judicialização da saúde — que chegou no ano passado, segundo o Relatório
de Justiça (CNJ, 2016[1]), a mais de
800 mil ações, com inúmeras decisões que incorporaram de modo individual
tecnologias em saúde[2], sem os
regramentos da Lei 12.401, de 2011, do Decreto 7.646, de 2011, e da Lei 6.360,
de 1976 — requer que sejam ampliadas as reflexões para se evitar que o SUS seja
atuado como se fora um shopping de medicamentos e tecnologias, de livre
escolha, ao arrepio de seus regramentos.
De acordo
com dados do Ministério da Saúde veiculados pela mídia, chegam a R$ 7 bilhões
os gastos com procedimentos, tecnologias e medicamentos decorrentes de decisão
judicial[3], muitas
afastadas dos parâmetros públicos que fixam um rol de medicamentos e
procedimentos pelas Relação Nacional de Medicamentos (Rename) e Relação
Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases) e outras regras
administrativas. Sob a intenção de tornar efetivo o direito à saúde, ele poderá
ser mitigado.
As
tecnologias, os serviços de apoio diagnósticos e os medicamentos são variados,
ainda que muitos se destinem ao mesmo fim; protocolos de concepção científica divergentes,
como a periodicidade de determinados exames preventivos, podem se alterar de
acordo com a corrente técnico-científica. Tudo isso se movendo num cipoal de
medicamentos, produtos, tecnologias, interesses de mercado, lucro e outros,
passando ao largo de normas que exigem incorporação fundada em prévias análises
técnico-científicas e protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas,
determinantes para os profissionais de saúde do SUS. O sistema público de saúde
não permite livres escolhas, e a administração pública não pode prescindir de
seus princípios, diretrizes, normas e organização.
Como os
medicamentos registrados podem ter destinação terapêutica semelhante[4], no setor
privado fica ao arbítrio do usuário e do médico o seu uso e prescrição. Em se
tratando de farmacoterapia fornecida pelo sistema público de saúde, dependerá
de decisão do Ministério da Saúde a sua incorporação, cabendo ao médico
prescritor, servidor público[5] ou com
vínculo com o setor privado que atua de forma complementar ao SUS, prescrever o
medicamento em acordo ao rol público[6].
No serviço
público, o princípio da legalidade, economicidade, razoabilidade (artigo 37 da
CF) e outros são imperativos, sendo o formalismo medida de segurança dos atos
administrativos que não podem ficar ao livre arbítrio do agente público. A
vontade administrativa somente pode produzir efeito quando observa a forma
prescrita. Decisões administrativas não podem ser tomadas sob o enfoque
particularizado, devendo ter como medida a amplitude do atendimento do
interesse público, mesmo quando aparentemente repercutem em âmbito restrito[7]. A presunção
de legitimidade do ato administrativo depende do cumprimento de requisitos
formais[8], por isso não
há como garantir a mesma liberdade que se garante ao setor privado.
O Brasil,
como quase todos os países da União Europeia, adota o sistema de não
incorporação imediata de medicamentos, produtos e tecnologias da saúde
registrados pelo órgão sanitário; uma segunda fase tratará da sua incorporação
no rol público de ações, serviços, produtos e medicamentos. Na Espanha[9], a
incorporação passa por um processo de negociação de preço logo após o seu
registro nos órgãos da União Europeia. Poder público e fabricante discutem o
preço antes de sua incorporação. Não havendo acordo, é livre a circulação no
mercado, sem, contudo, integrar o rol de ações, bens e serviços públicos. O
registro de medicamento e tecnologia requer, para ser incorporado no nosso
país, atuação da Conitec.
Para
garantir a segurança do seu uso, a Anvisa[10] procede
ao seu exame para fins de registro, à luz de sua eficácia, segurança e boas
práticas de fabricação reguladas pelas lei 6.360, de 1976, e 9.782, de 1999,
que proíbem a circulação de medicamento, produto e tecnologias no território
nacional sem registro ou autorização.
Por sua vez,
a Conitec[11],
órgão que integra a estrutura do Ministério da Saúde, com a atribuição de
assessoramento quanto à incorporação, inclusão e exclusão de tecnologias que o
SUS irá dispor à população, verifica aspectos que não os da Anvisa[12],
sendo sua atribuição emitir relatórios sobre as evidências científicas e seu
custo-benefício em relação a outras tecnologias já existentes e ainda o seu
impacto orçamentário e os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas. Não
cabe à Anvisa as análises que competem à Conitec, ou seja, a evidência
científica e o custo-benefício, que somente atua para o SUS.
A Conitec
aprecia dois aspectos fundamentais que devem ser tomados como standards para
todos, emitindo relatório conclusivo quanto às evidências científicas sobre a
eficácia, acurácia, efetividade, segurança e a avaliação econômica comparativa
dos benefícios e custos em relação a tecnologias já incorporadas (artigo 19-Q,
Lei 12.401). O Ministério da Saúde, pelo seu órgão competente, declara, por
portaria, incorporada a tecnologia ou o medicamento.
O ativismo
judicial e alguns atos do Poder Legislativo mais recentes, por não considerar
as competências da Anvisa e as da Conitec, têm afetado tanto a organização do
SUS quanto a segurança das pessoas. Recentemente, o Poder Legislativo editou a
Lei 13.269, de 2016, determinando a concessão, aos pacientes com câncer, do
medicamento fosfoetanolamina, que não foi registrado pela Anvisa. A referida
lei foi atacada pela ADI 5.501, de 2016, cuja eficácia foi suspensa por medida
liminar por entender o STF que a não exigibilidade do registro sanitário
discrepa das balizas constitucionais de proteção da saúde.
No dizer do
relator, ministro Marco Aurélio Mello, “o direito à saúde não será plenamente
concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das
drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a
afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano”.
Havendo, no seu entendimento, ofensa à separação dos Poderes. O ministro
salienta que a aprovação do produto pela agência é condição para
industrialização, comercialização e importação com fins comerciais, segundo o
artigo 12 da Lei 6.360/1976. A edição da recente Lei 13.454, de 2017, que
autorizou a comercialização no país de medicamentos contendo substâncias
moderadoras do apetite, proibidas pela Anvisa, está na mesma linha de invasão
de competência e quebra da independência dos Poderes.
Há também
algumas decisões do Judiciário que não reconhecem os contornos jurídicos[13] da
integralidade da assistência à saúde, como: a) os recursos orçamentários
planejados e aprovados pelo órgão público competente (Estado) e pelo conselho
de saúde respectivo (participação social); b) os planos de saúde quadrienal e a
programação geral anual das ações e serviços de saúde, também aprovadas pelo
conselho de saúde; c) os consensos interfederativos definidos na Comissão
Intergestores Tripartite (CIT), conforme a Lei 12.466, de 2011; d) as
incorporações de tecnológicas em saúde examinadas pela Conitec e aprovadas pelo
Ministério da Saúde e seus protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.
Poderia se
argumentar que, pela via orçamentária e da incorporação de tecnologias, o
direito à saúde pode ser asfixiado. Contudo o mau uso dos institutos não lhe
negam o mérito. A questão é que o subfinanciamento da saúde, ponto nevrálgico
nas inadequações dos serviços às necessidades da população, não tem sido
enfrentado com suficiência, sendo temas distintos, devem ser tratados de forma
distinta.
A única vez
em que o financiamento foi investigado sucedeu quando da representação feita
pela sociedade ao então procurador-geral da República, Aristides Junqueira, em
1994[14],
que determinou a abertura de inquérito civil público para apurar a
insuficiência do financiamento federal e os repasses das áreas econômicas do
governo federal à saúde.
Admitir que
a integralidade da assistência à saúde tem limites e contornos é uma forma de
não sucumbir ao mercado e a outros interesses econômicos e preferências
médicas, dotando o sistema de racionalidade, parâmetros assistenciais e balizas
que primem pela igualdade de atendimento, qualidade e racionalidade do gasto.
Nos parece
que algumas medidas adotadas com as melhores intenções talvez possam estar
deslocando o centro da causa da judicialização e minimizando competências de
órgãos do Poder Executivo, como é o caso do banco de dados sobre evidências
científicas. O acordo celebrado entre o Conselho Nacional de Justiça e
Ministério da Saúde, visando à criação de um banco de pareceres
técnico-científicos para acesso dos magistrados sobre evidências científicas de
medicamentos e tecnologias em litígio, pode propiciar uma inversão de papéis,
por ser da Conitec essa responsabilidade.
Melhor,
talvez, seria prestigiar e mais qualificar a Conitec para oferecer prontas
respostas ao Poder Judiciário em suas necessidades, aprofundando o debate sobre
os motivos da não incorporação de tecnologias, ao invés de deslocar para o
magistrado essa pesquisa. Nos parece que essa medida já admite, de plano, que o
juiz poderá incorporar, de modo individual, medicamentos e tecnologias para
além das listagens públicas pactuadas entre os gestores, quando a discussão com
a Conitec seria mais conveniente para se entender os motivos da não
incorporação e assim decidir o caso individual ou até fazer com que a Conitec
mude o entendimento.
Vivemos em
uma sociedade econômica, capitalista, onde o lucro é o fim último, acima do
interesse público. Se o capitalismo fosse humanitário, não precisaria de
regulação. É preciso, pois, analisar o custo-benefício de drogas e tecnologias
que concorrem no mercado. A maioria dos novos medicamentos comercializados é de
modificações dos existentes com supostas vantagens que em muitos casos não
resistem a estudos farmaeconômicos comparativo com os existentes, conforme
Antonio Iñesta[15].
A saúde
exige, dada a sua relevância constitucional, mecanismos de controle público,
como é o caso da Conitec. Incorporar no serviço público todos os medicamentos
registrados seria o mesmo que transformar esses serviços num mercado livre,
criando oportunidades de o fabricante concorrer com diversos produtos de igual
efeito e diferentes preços, ao sabor de preferências pessoais, transformando a
garantia de um direito na garantia de desejos. O SUS não é um shopping da saúde
onde a livre escolha é sustentada por quem a escolheu, tampouco uma feira de
tecnologias ao sabor de preferências tecnológicas, e sim um serviço de proteção
à saúde de acesso universal, que tem alto e incessantes custos e baixo
financiamento, exigindo racionalidade, eficiência nos gastos e evidências
científicas.
É obrigação
do administrador público observar o princípio da legalidade, economicidade e
razoabilidade para que todos tenham as mesmas oportunidades, viabilizando-se
assim serviços públicos de modo igualitário, resultantes de criteriosas
análises e estudos. Direitos coletivos somente se viabilizam se a administração
pública for sistêmica, regrada e igualitária.
A natureza
pública da saúde a torna mais regulada, e, mesmo quando atuada pelo particular,
o poder de intervenção estatal é mais amplo. A sua relevância pública a sujeita
à regulamentação, fiscalização e controle[16] (artigo
197 da Constituição), não lhe permitindo ser tratada como se fora uma padaria.
Não sejamos
ingênuos nem vamos nos iludir: garantir tudo a todos significaria que o poder
público abdicou de suas responsabilidades de regular o mercado, de proteger o
serviço público, de racionalizar os gastos, de impor regras à ganância, de
garantir transparência e razoabilidade nas escolhas. Aceitar que escolhas que
competem ao poder público sejam feitas pelo mercado de modo indireto é aceitar
a apropriação do mercado sobre o interesse público.
Um Estado
justo é aquele que distribui as coisas que prezamos, no dizer de Sandel[17] —
riquezas, deveres e direitos, poderes e oportunidades, cargos e honras de
maneira certa, ou seja, dando a cada pessoa aquilo que ela merece, sem
contabilizar as preferências por ser necessário considerar todos de modo igual.
Para que
isso aconteça num sistema de saúde público, deve-se adotar o maior rol possível
de serviços, produtos, insumos, medicamentos, tecnologias que possam ser
distribuídos de maneira certa para garantir as necessidades de saúde com
igualdade. Torna-se imperioso depurar o sistema de interesses de mercado,
preferências pessoais, corporativismo profissional, mero conforto pessoal e
outros desejos e elementos que possam embaçar o sentido de justiça e impedir de
se fazer a coisa certa.
[1] www.cnj.gov.br
[2] Incluído os medicamentos, produtos, insumos, serviços, procedimentos quando neste trabalho de referir de modo geral a tecnologias.
[3] Além do mais, grande parte das ações judiciais é proposta por pessoas que têm um contrato de plano de seguro saúde.
[4] A EU, em 2003, procedeu ao exame dos medicamentos considerados novos e chegou a conclusão que 2/3 são variação de medicamento antigo. Iñesta, Antonio. Servicios Y Sistemas de Salud. Espanha: Ediciones Diaz Santos, 2006.
[5] O Decreto 7.508, de 2011, em seu artigo 28, determina regras para o servidor público prescrever medicamentos.
[6] Entendemos ser admissível a prescrição fora do rol público quando o médico, mediante justificativa demonstrar, pelas evidências científicas, ser o medicamento não incorporado o único capaz eficiente para o tratamento do paciente e a Conitec ser ouvida, devendo ser criado um sistema que permita essa consulta e resposta com urgência que a situação requerer.
[7] Medauar, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 12º edição. 2008.
[8] Justen, Marçal Filho. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva Editora. 2005.
[9] Iñesta, Antonio. Sistemas y Servicios Sanitários. Madri: Ediciones Diaz Santos, 2006.
[10] Lei 9.782, de 1999.
[11] Ver Decreto 7.646, de 2011.
[12] A regulamentação, tanto quanto a fiscalização de serviços, produtos, cargas, transportes nocivos à saúde são medidas de segurança sanitária para preservação da saúde das pessoas e conferidas a órgãos e entes públicos com poder de autoridade do Estado.
[13] Em 2003, publiquei um artigo sobre os contornos jurídicos da integralidade da assistência à saúde. www.idisa.org.br
[14] Arquivos do Idisa: www.idisa.org.br. A autora teve participação na elaboração da representação e no seu acompanhamento e interação com o Ministério Público Federal.
[15] Iñesta, Antonio. Op. cit.
[16] Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. O autor preconiza que a saúde fica inteiramente sob regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
[17] Sandel, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 9º edição, 2012.
[2] Incluído os medicamentos, produtos, insumos, serviços, procedimentos quando neste trabalho de referir de modo geral a tecnologias.
[3] Além do mais, grande parte das ações judiciais é proposta por pessoas que têm um contrato de plano de seguro saúde.
[4] A EU, em 2003, procedeu ao exame dos medicamentos considerados novos e chegou a conclusão que 2/3 são variação de medicamento antigo. Iñesta, Antonio. Servicios Y Sistemas de Salud. Espanha: Ediciones Diaz Santos, 2006.
[5] O Decreto 7.508, de 2011, em seu artigo 28, determina regras para o servidor público prescrever medicamentos.
[6] Entendemos ser admissível a prescrição fora do rol público quando o médico, mediante justificativa demonstrar, pelas evidências científicas, ser o medicamento não incorporado o único capaz eficiente para o tratamento do paciente e a Conitec ser ouvida, devendo ser criado um sistema que permita essa consulta e resposta com urgência que a situação requerer.
[7] Medauar, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 12º edição. 2008.
[8] Justen, Marçal Filho. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva Editora. 2005.
[9] Iñesta, Antonio. Sistemas y Servicios Sanitários. Madri: Ediciones Diaz Santos, 2006.
[10] Lei 9.782, de 1999.
[11] Ver Decreto 7.646, de 2011.
[12] A regulamentação, tanto quanto a fiscalização de serviços, produtos, cargas, transportes nocivos à saúde são medidas de segurança sanitária para preservação da saúde das pessoas e conferidas a órgãos e entes públicos com poder de autoridade do Estado.
[13] Em 2003, publiquei um artigo sobre os contornos jurídicos da integralidade da assistência à saúde. www.idisa.org.br
[14] Arquivos do Idisa: www.idisa.org.br. A autora teve participação na elaboração da representação e no seu acompanhamento e interação com o Ministério Público Federal.
[15] Iñesta, Antonio. Op. cit.
[16] Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. O autor preconiza que a saúde fica inteiramente sob regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
[17] Sandel, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 9º edição, 2012.
Fonte: ConJur
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